LogoAgenda Cultural Cabo Verde

    20 Óne de Linga d´Sentonton

    8 de dezembro de 2020

    Neste instante em que acaba de ler o título, está, se calhar, ainda, a franzir a testa: “como assim 20 óne!!?” Sim, leu bem, Linga d´Sentonton” já completou duas décadas.

    Se este 2020 não está a deixar muitas boas memórias ao mundo, pelas razões que nem vale a pena evocar, vai servindo, pelo menos, para desenhar algumas efemérides redondas. E uma delas tem que ver com Linga d´Sentonton - o filho primogénito do Cordas do Sol - que completa duas décadas de existência.

    Quando, há 20 anos, acontecia o virar do século, pairava no ar muita incerteza e até medo. Tinha sido altamente disseminado, por todo o Planeta, que o fim do mundo iria acontecer no ano 2000. Por causa disso, muita gente nem sequer queria que esse tal malfada do ano chegasse. Estava a ser crucificado mesmo antes de nascer, coitado! Noutras paragens, houve até quem tivesse jogado na prevenção e acabado com a própria vida, antes de dar de caras com esse anunciado monstro composto por um 2 e 3 zeros.

    Entretanto, chegou o ano 2000 e nada aconteceu… de anormal: Janeiro teve 31 dias, Fevereiro não chegou aos 30, Março teve 31, Abril 30, Maio ia a decorrer e, em Santo Antão, um grupo de rapazes do Paul, que já vinha actuando durante alguns anos em serenatas, realizava o sonho de gravar um CD. Esse grupo era Cordas do Sol. Ao disco de estreia deram o nome de Linga d´Sentonton. O trabalho discográfico, depressa, cativou o público, nas ilhas e no estrangeiro.

    Linga d´Sentonton um sobura, folod ne moda de nh’ovô, n t’uvil n’uvid te zni’m séb”

    Este refrão, rapidamente, estava na boca de todos. E despertava muita gente para a necessidade de se valorizar mais a tal Linga de Sentonton, levando-a, sem complexos, para lá das fronteiras da ilha. É certo que esta tarefa já vinha sendo realizada por outros actores. Aqui, destaco os casos do Juventude em Marcha, no teatro, e do conjunto Porto Grande, na música. É de justiça, igualmente, fazer referência a Mota, o popular “rock-n-rolista” dos inícios dos anos 90. Quem não se lembra, por exemplo, da febre de Méria Kze k Bo Tem”(Porto Grande) ou então da célebre Kotchupa ke Pêxe frit (Mota). Mas, muito antes, nos anos 70 e 80, compositores como Frank Cavaquim, Edy Moreno e Faria Jr. já tiravam para fora populares coladeiras num vernáculo bem vincado da “ilha das montanhas”, eternizadas pelas vozes de intérpretes como Frank Mimita, Jaqueline Fortes ou pelo próprio Edy Moreno, no caso da célebre Arriola. Nhe Lolita resgatou-a, mais recentemente, numa oportuna tirada teatral.

    Depois dessas iniciativas situadas entre os anos 70 e finais dos anos 90 - se bem que, no caso do Juventude em Marcha, eles nunca pararam até agora - diria que, em 2000, o conjunto Cordas do Sol veio incrementar esse “descomplexo” em relação à linga de Sentonton.

    O álbum de estreia é, pois, uma profunda exaltação à ilha de Santo Antão, seus costumes, suas tradições, à forma de pensar e de estar da sua gente. Cada canção enaltece um determinado aspecto: o ritual dos casamentos tradicionais e toda a simbologia que carrega (Kzement de R’Bera Riba); o dramático e pitoreco espectáculo dos bois a fazer rodar os trapiches, algo outrora bem marcante em todos os verdejantes vales da ilha (Eh Boi); o quotidiano dos agricultores numa constante luta para garantir um subsistência, driblando a seca e tentando fintar pragas ou bichos daninhos ( Pardal); a sina do cabo-verdiano e, particularmente, do homem de Santo Antão, obrigado a emigrar, muitas vezes de forma forçada, para as roças de São Tomé e Príncipe e Angola em busca da sobrevivência (No Coxê N’Angola); a exaltação das festas populares, com a alma de São João bem reflectida na canção “Son Jon de Tio Miquinha”; o doce linguajar do povo em “Linga de Sentonton”, que aliás dá nome ao disco; os valores da “boa criação” (M’nininha Fêma) ou então o amor à terra, expresso no tributo ao torrão que fez brotar o conjunto (Paul – Terra de Sodade).

    O álbum foi um grande sucesso em Santo Antão, em Cabo Verde e na diáspora. Na emigração, no agora tão propalado mercado da saudade”, entrou e "zniu séb" nos ouvidos dos filhos ausentes na Terra Longe”, sobretudo os da ilha.

    A largada foi de tal forma bem sucedida que, passados escassos dois anos, o conjunto voltou à carga com novo disco, “Marijoana”.

    Se Linga d´Sentonton abriu o caminho, Marijoana pavimentou esse mesmo caminho, deixando-o a reluzir. O segundo disco é uma demonstração de vitalidade e de amadurecimento de um grupo que nasceu na simplicidade de um meio pequeno, aprendeu a gatinhar e depois criou asas sempre com epicentro fora dos principais centros urbanos do país.

    Marijoana manteve os grandes temas explorados no primeiro trabalho e aprofundou-os, com mais alma, com mais estética. De ”Cumpéd Juquim” a “Concei D’Nho Ovô”; de “Mnina Marisa” a “Mirin D’Aga”, passando por “Viva Kel Bolo”, “Faimo”, “Nene” e “Orfão”, sem se esquecer, claro, “Marijoana”, que dá nome ao CD. É, para mim, o melhor disco que o Cordas do Sol lançou até hoje.

    Depois desses dois grandes tributos a Santo Antão, oferecidos num curto período de dois anos, Cordas do Sol teve de esperar mais sete para voltar a gravar um disco de originais. Em 2009, nasce Lume de Lenha”. Pelo meio, em 2004, uma reedição – Terra de Sodade – que traz uma mescla de faixas recuperadas dos dois primeiros trabalhos.

    Em 2015, surge o até agora último filho do Cordas do Sol – Na Montanha – que chega numa fase em que o grupo já tinha sofrido algumas mudanças, entre saídas de elementos e novas aquisições. É, do meu ponto de vista, o trabalho menos bem conseguido de todos, se analisarmos do ponto de vista daquilo que é(ra) o ADN do Cordas do Sol (pelo menos, aos olhos do senso comum). Na Montanha já mostra um Cordas do Sol algo “desenraizado” do seu habitat, o tal terreno fértil de Santo Antão onde, outrora, escavara matéria prima para obras de arte bem genuínas.

    Este “desvio”, aliás, já se tinha feito notar antes, de forma mais ou menos evidente, no álbum de 2009 – Lume de Lenha - altura em que o conjunto do Paul começa um processo gradual de “desconfinamento” da ilha-mãe para ir à procura de um húmus mais heterogéneo. Ou seja, começa a piscar o olho a temas/problemáticas mais universais. São disso exemplos os casos das músicas Ka Bo Da Ka Bo Fma” (droga), Mnine de Rua ma Mim” (crianças de e na rua) e Kalá Kalá” (Escravatura/Liberdade de Expressão). Com efeito, a transposição das fronteiras da ilha obriga a algum sacrifício da própria <i>linga d´sentonton, logo aquela que, antes, tinha sido colocada num pedestral de sôbura.

    Facilmente se consegue notar que essa opção do Cordas do Sol de alargar o campo de actuação teve objectivos comerciais, o que é perfeitamente legítimo. Até conseguiu! Basta recordar, por exemplo, a notoriedade que o conjunto paulense alcançou com a eleição da música Mnine de Rua Ma Mim para Canção do Ano na Gala dos CVMA, de 2011. Só já não se compreende tanto o divórcio com a outrora menina dos olhos do conjunto, a linga de sentonton”. (Na verdade não chega a ser bem um divórcio, mas alguma instabilidade no relacionamento). Terá sido um erro de estratégia?

    Voltando ao Na Montanha, de 2015, o álbum acentua o tal “desenraizamento”. É certo que aqui e ali o grupo tenta esgravatar terrenos onde, em tempos idos (2000 e 2002),fora muito feliz. As canções Na Montanha, Pexera e Sofia” (esta última, tomado de empréstimo ao Mix Cultura) procuram essa “reconciliação” com as “iguarias” da casa-mãe, mas, julgo, sem o paladar nem cheiros tão fortes dos petiscos dos primeiros tempos.

    Bem, dou conta agora que já estou a divagar bastante. O propósito deste artigo, afinal, era realçar os 20 anos de Linga de Sentonton”. Como o tempo voa, o disco já tem 20 anos!

    Que venham muitos mais, Cordas do Sol. E se chegarem à mesa com sabores das receitas da avó lá da ilha, preparadas em lume de lenha, tanto melhor para um garfo sedente das coisas da terra!

    Artigo de Benvindo Neves