Já tínhamos visitado a zona da antiga hidrobase na Calheta de São Martinho, no sudeste do município de Ribeira Grande de Santiago, a cerca de 15 minutos de carro do centro da cidade da Praia e a 10 de Cidade Velha. Ali, existe uma pacata aldeia piscatória com menos de dez habitações. Os residentes, alguns descendentes dos antigos trabalhadores da base, têm pouca ou nenhuma informação sobre a sua história. Sem guias especializados, a minha visita resumiu-se a observar os vestígios da antiga infraestrutura que funcionou entre 1928 e 1930, uma das expressões da participação de Cabo Verde na história global, devido à sua localização geográfica estratégica.
A hidrobase da Calheta de São Martinho pertencia, na época, à Aéropostale, empresa francesa pioneira do correio aéreo, responsável por ligar a Europa à América do Sul. Em 1933, a Aéropostale fundiu-se com outras companhias, dando origem à Air France. Em 1981, a Air France fixou uma placa na base do suporte da grua que retirava os hidroaviões da água, em memória da escala do navio "Peronne" em dezembro de 1927, que trouxe os equipamentos para a instalação de uma estação de rádio, fundamental para a segurança das rotas aéreas francesas.
Na manhã desta segunda-feira, 21 de abril, o Presidente da República, José Maria Neves, visitou a antiga hidrobase no âmbito das comemorações do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios (18 de abril). Professores e investigadores da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde prepararam uma visita guiada e uma exposição provisória sobre a história do local. Aproveitámos para integrar a comitiva da visita.
A Universidade Jean Piaget tem sido uma das principais impulsionadoras da divulgação da história da Aéropostale em Cabo Verde, através de artigos científicos, conferências, estudos e exposições.
Situada entre dois importantes centros urbanos da ilha de Santiago (Praia e Cidade Velha), a baía de Calheta de São Martinho, naturalmente protegida dos ventos e da agitação do mar, serviu de ponto de amaragem para os hidroaviões da Aéropostale durante dois anos, como escala no trajeto para a América do Sul. No entanto, a base continuou em funcionamento até 1939, como estação radiofónica de apoio às comunicações aéreas. Em 1934, a companhia francesa construiu um aeródromo de terra batida em Achada Grande (atual FIC), onde antes funcionava o aeroporto da Praia.
Em 1927, o construtor francês Raymond Vanier chegou à ilha de Santiago com a missão de escolher uma baía segura para instalar a hidrobase. Percorreu a costa da ilha e optou pela Calheta de São Martinho, reconhecida pela sua tradição marítima. A 6 de março de 1928, Calheta de São Martinho foi recebia o seu primeiro hidroavião - o Camps, com o primeiro correio norte/sul a bordo. E a partir dali, o correio seguia rumo às Américas em navios designados de Avisos (antigos caça-submarinos da Primeira Guerra Mundial).
Curiosamente, quatro séculos antes, no século XVI, o corsário inglês Francis Drake escolheu a mesma baía para desembarcar com a sua tripulação, evitando os canhões da Cidade Velha. A pé, atacaram, saquearam e destruíram a então capital da colónia.
No final do século XX, o empresário Pierre-Georges Latécoère reaproveitou hidroaviões e pilotos veteranos da Primeira Guerra Mundial para lançar um emblemático serviço postal aéreo, uma alternativa às demoradas ligações marítimas. A ligação aérea começou entre a Europa e África, estendendo-se depois à América do Sul, ligando países como Brasil, Uruguai, Argentina e Chile. Cabo Verde foi um ponto crucial na travessia do Atlântico.
A rota postal entre Europa e América do Sul, definiu-se uma linha com a seguinte trajectória – Paris, Toulouse, (França) Alicante Cabo Juby (Marrocos), Villa Cisneros (Sahara Ocidental/Espanha), Saint Louis (Senegal), Calheta de São Martinho (Cabo Verde), Fernando de Noronha, Natal, (Brasil), Buenos Aires (Argentina) e Santiago do Chile. Nascida assim no mito do aeropostal. É significativo que a linha unia duas cidades africanas irmandadas historicamente e atualmente Património da Humanidade – Saint Louis e a Cidade Velha.
Segundo um dos painéis da exposição, havia três etapas particularmente desafiantes na rota da Aéropostale: o deserto do Saara, onde muitos aviões caíram e que inspirou a obra "O Principezinho"; a cordilheira dos Andes, também retratada em livro por Saint-Exupéry; e o próprio oceano Atlântico.
Outro dado curioso apresentado na exposição é a visita de Anne e Charles Lindbergh em 1934, um dos momentos mais mediáticos da história da hidrobase. Os pioneiros da aviação dos EUA chegaram à Calheta de São Martinho num hidroavião Lockheed 8 Sirius, hoje exposto no National Air and Space Museum (Smithsonian), em Washington. Lindbergh estava particularmente interessado em estudar os ventos dominantes no arquipélago. A Pan American Airways aproveitava os seus voos exploratórios para mapear futuras rotas comerciais. A passagem está descrita no livro “Listen! The Wind” (1938), de Anne Lindbergh.
Gertrudes de Oliveira, investigadora da Universidade Jean Piaget, lamenta que projetos para valorização do sítio nunca tenham saído do papel. Dá o exemplo de Saint-Louis, no Senegal, onde existe um museu dedicado à Aéropostale, o hotel “La Poste” e vestígios preservados da base. “Este lugar podia integrar as rotas turísticas”, reforça Wlodzimierz Szymaniak, professor da mesma universidade, que recorda ainda a existência de um navio a vapor afundado a 200 metros da costa, a 20 metros de profundidade, supostamente português, que teria apoiado a construção da base.
Szymaniak sublinha que a hidrobase nunca passou da fase experimental e não conseguiu o desenvolvimento projetado inicialmente pois o avanço tecnológico no início da década de 1930 permitiu aos aviões realizar a travessia transatlântica sem necessidade de escala.
Na Calheta de São Martinho restam ainda os suportes da grua, do farol, a torre de controlo, o edifício da rádio e as oficinas de manutenção. O seu valor histórico e museológico "exige" ação das autoridades competentes.
Importa referir que o nome “Aéropostale” é também utilizado por uma marca norte-americana de vestuário fundada em 1952, que nada tem a ver com a empresa aérea. Muito popular entre os jovens, especialmente através dos produtos enviados, em bidões, por emigrantes nos Estados Unidos, é comum ver pessoas em Cabo Verde vestidas com roupas da marca.
Na visita desta segunda-feira, o Presidente da República apelou à valorização do local, defendendo que o espaço seja transformado numa área de atração turística, estudo e investigação.
Classificada como património municipal, a hidrobase completa 100 anos em 2028. Para Szymaniak, essa data poderá ser um marco para dinamizar o turismo histórico na região. E vai mais longe: "Esta baía tem condições naturais ideais para a construção de uma marina e de um centro de mergulho. Uma marina com o nome Aéropostale atrairia, só pelo nome, muitos velejadores.”
Décio Barros