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    A emigração e os seus mistérios - o trilho de Chila Tavares

    20 de janeiro de 2021

    O tempo não passou em vão. Dir-se-ia que foi ontem e não há seis anos que as adversidades da vida arrancaram Chila Tavares do seu país e de tudo o que lhe era familiar. Nos filhos encontrou a resistência. Foi guiada pela força do amor. Amor pelos filhos e por si mesma. Porém, a nostalgia acompanha-a, tal como a todos os emigrantes. Na emigração, para quem sonha com o regresso, cada batalha que se aceita lutar, cada lágrima que se derrama e cada conquista são uma preparação para esse desfecho. Quanto à Chila, a resposta foi categórica: “Um dia, se Deus quiser! Não troco Cabo Verde por nenhum lugar no mundo”.

    Algures entre as viagens da minha mente, medito sobre os diversos motivos que levam alguém a sair da sua terra natal para ir em busca de um futuro incerto num país longínquo. Sento-me numa mesinha no centro da sala, com o objetivo de debuxar umas linhas. Daqui vejo o céu como uma espécie de moldura branca infinita, que cobre essa ínfima parte que engloba esse mundo imenso. Apanhei esse hábito. Todas as manhãs, venho aqui observar esse cenário antes de começar as labutas do dia-a-dia. Labutas de emigrante na terra longe. Hoje, estou aqui imóvel há mais de 30 minutos a meditar nesta crónica que escrevo. Esta é uma daquelas que dói, inspira e acalenta o coração. Assim mesmo, tudo misturado. Entretanto, eis que vejo esperança a cair do céu. Isso mesmo, hoje neva nesta cidade e, para mim, não é uma simples coincidência. Deslizam-se flocos de magia numa espécie de sincronização pela nova janela da minha vida. É o grito de esperança, tal como a história que vos conto! Acreditem-me.

    Filha do concelho de São Miguel, Chila Tavares emigrou após 15 anos de carreira como professora do ensino primário nesse mesmo município, situado na região nordeste da ilha de Santiago (Cabo Verde). Começou a sua vida profissional em 1998, aos 21 anos de idade. Em 2010, a ex-docente teve também uma experiência como coordenadora pedagógica. O que acabou por ser o seu último desafio profissional antes do momento de viragem – a emigração. Nos finais de 2014, devido a um casamento abusivo, fortemente marcado pela violência conjugal, que por sua vez deu lugar a algumas patologias físicas e psíquicas e um olhar de uma sociedade que, por vezes, ainda crucifica a vítima e vitimiza o abusador, Chila viu na emigração a sua única salvação. Emigrou à procura de autoconhecimento e cura. Uma história que carrega consigo cicatrizes, mas também uma determinação profunda de triunfar e, sobretudo, de se superar. Com dois filhos nos braços e um coração dilacerado, a maior motivação desta mãe era cumprir a promessa que fizera ao primogénito, que permanecera em Cabo Verde: que passados dois anos o traria para perto dela e dos irmãos.

    “Queria recomeçar num lugar longe e sozinha, onde não tivesse ninguém. Longe de tudo e de todos. Queria fazer uma terapia, perceber o porquê de ter aceite determinadas situações que aconteceram na minha vida e me conhecer melhor, ter mais amor por mim […]saber o que sou, no fundo encontrar respostas para as minhas perguntas e curas também.”

    O renascimento
    Em França, chamam-lhes simplesmente os “sans papiers“ (sem papéis). Mas são mais do que isso. São gente com história, com uma vida e um mundo de sonhos por concretizar. Ao chegar a França, Chila enfrentou a dura realidade de pertencer a esse grupo. “Às vezes não tinha nem tempo para comer porque começava às 8h da manhã e terminava 19h. Não me pagavam as horas exatas que trabalhava, mas não tinha outra escolha. Trabalhei em vários sítios, passei por muitas coisas complicadas […]Todo esse processo foi difícil devido às pessoas que se aproveitam de nós por não termos documentos. Tive também momentos que não tive trabalho, passei por algumas associações […] tive de pedir ajuda.”

    As complicações vão muito além das dificuldades de acesso ao trabalho quando não se está legalizado no país de acolhimento. Sem casa fixa para morar e com dois filhos, Chila assume que foi um recomeço complexo. Eu diria árduo. Morou com várias pessoas diferentes, passou de casa em casa, até chegar mesmo a ser expulsa de uma delas. “Subarrendaram-me uma casa, mas esta pertencia ao estado. Um dia a polícia foi lá a casa expulsar a dona, mas éramos nós quem lá estava […] Foi muito doloroso e traumático para os meus filhos e, para mim, sobrou a impotência de nada ter podido fazer para os privar daquela má experiência.” Após essa situação, foram abrigados pela amiga da senhora que lhes subarrendara a casa e, mais tarde, foram acolhidos por um casal francês, a quem hoje consideram ser parte da família.

    Apesar dos tropeços e complicações diários, Chila nunca parou de lutar e hoje, finalmente, já está legalizada no país e conseguiu cumprir a promessa que fizera ao primogénito– trouxe-o para perto dela.

    Paradoxos da vida: Atrevo-me a dizer que, se por um lado a ausência de amor conduziu esta mãe ao caminho da emigração, por outro, foi o amor pelos filhos que a motivou e salvou na terra longe. Com um tom de voz que, hoje aparenta serenidade, Chila afirma: “Consegui a documentação em setembro de 2020 e em novembro fui para Cabo Verde. Foi uma vitória para mim”.

    A vitória!
    Cabo Verde é um dos países africanos com maior taxa de emigração. A falta de emprego, a seca e a educação são alguns dos motivos que levam os cabo-verdianos a emigrar. No entanto há também quem emigre para se salvar! Enquanto Chila se desvencilhava para encontrar uma vida digna para si e para os filhos, nunca se esqueceu da razão que a levou a escolher o caminho difícil da emigração – a cura. Na diáspora, recomeçou, renasceu e cresceu, mas na sua alma está enraizada a nossa cabo-verdianidade. “Sinto falta da minha mãe, de passar tempo com a minha avó e alguns outros familiares que lá deixei. Sinto falta da comida, do mar, do barulho do mar!». Sinto muita falta do meu país, daquele calor humano que aqui não tem e daquela morabeza que temos lá que é completamente nossa!”. No dia-a-dia, Chila vive Cabo Verde e considera muito importante não se perder a ligação com a sua cultura. “Falo sempre crioulo com os meus filhos, faço muita comida tradicional e oiço bastante música cabo-verdiana. Isso faz-me sentir em casa. ”Esse patriotismo, conduziu-a a candidatar-se para um projeto apelidado “Miss mãe Cabo Verde”. “Vi nisso uma oportunidade de estar num meio cabo-verdiano, de falar da nossa música e da nossa cultura. Além disso, também faço parte de algumas associações. Sempre que tenho alguma oportunidade, vivo algo para sentir Cabo Verde.”

    A emigração e os seus mistérios! Eis a verdade: por vezes na terra longínqua, os nossos dias podem variar entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. A emigração pode doer, mas ela também pode curar. Chila Tavares não se arrepende desse duro percurso. Aprendeu, evoluiu e encontrou-se a si mesma. Uma realidade que nos relembra que “para ver o arco-íris, é preciso não temer a chuva”. Costumo pensar que há um momento preciso na vida em que fazemos determinadas escolhas e, entre elas, uma crucial que nos leva a um outro momento preciso da vida. Este. Esta janela, este céu, esta mesinha e esta pergunta: Afinal, porquê emigrar? Por vezes, por uma questão de autossalvação.

     

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    Crônica de Fátima Fernandes
    Crioula, residente em Paris, França @fatima__fernandes_ no Instagram