Crónica de Benvindo Neves
Em maio de 2001, quando Dailon Livramento nasceu, Cabo Verde já tinha visto morrer de forma prematura a ilusão da Copa do Mundo do Japão e da Coreia do Sul. O aborto do sonho aconteceu ainda no quarto mês do ano 2000, naquela que era a nossa primeira tentativa de disputar um apuramento.
A seleção nacional sequer conseguiu entrar para a fase de grupos de qualificação. Caiu na eliminatória preliminar, aos pés da Argélia, com 0-0 no estádio Adérito Sena e 2-0 fora de casa. O atual selecionador nacional, Bubista, ainda era jogador, um dos mais experientes da seleção.
Em 2002, entre os meses de maio e junho, o Mundo centrava seus olhares na primeira Copa do Mundo realizada no Oriente. Lá longe, na Ásia, com os duelos do Mundial a acontecerem à tarde e ao início da noite, nas ilhas de Cabo Verde ainda era madrugada.
Aos crioulos nas ilhas que desejassem seguir algum jogo, não restava alternativa senão acionar o despertador do seu então famoso relógio "casio" preto, tão indispensáveis quanto "catchorrinhas" naquela altura. Ou, então, manterem-se acordados até altas horas.
Lembro-me de uma "direta" que nós, um grupo de rapazes, ensaiámos fazer lá em Ribeirinha de Jorge para poder, às 02 da madrugada, acompanhar um Argentina x Nigéria. Para se aguentar, era preciso arranjar o que fazer. O jogo de cartas (bisca, tchintchon, entre outros) era, à época, os Facebook, Instagram, TikTok, YouTube ou Netflix de hoje.
Bem, devo confessar que depois de uma longa biscada noite dentro, quando chegou a hora do jogo, a malta toda já andava de beiços caídos, "à pesca de bidiôn". E com olhos "candiód moda um lanterna sem pitrôl ta morrê lume", recordando o trovador Manuel de Novas.
Mal impregód todo aquele sacrifício!
Outros inventavam uma paródia qualquer para, ao longo da noite poder matar o tempo e manter o sono afastado. Tudo era ao som de canções de artistas e bandas que faziam furor junto dos mais jovens daquela época. Na crista da onda estava, sobretudo, a malta da Holanda: Os Splash!, Dina Medina, Grace Évora, Kino Cabral, Gil Semedo, Marizia do Rosário…
Marizia!
A então jovem menina tinha conquistado os corações dos adolescentes, e não só, logo quando apareceu, em 1997, com o seu álbum de estreia, “Desejo”. Canções como Meditá, Hora de Cantá ou Terra Longe haviam caído no goto de todos.
Dois anos depois, o segundo CD: Tão Piknin! Mais um grande sucesso, com temas como Dame Bo Love, Volta pa Mim, Mãe ou o hit Terra Franca, uma grande declaração de amor a Cabo Verde:
𝘊𝘢𝘣𝘰 𝘝𝘦𝘳𝘥𝘦 ê 𝘵𝘦𝘳𝘳𝘢 𝘥𝘦 𝘨𝘳𝘢𝘯𝘥𝘦 𝘷𝘢𝘭𝘰𝘳
𝘛𝘦𝘳𝘳𝘢 𝘧𝘳𝘢𝘯𝘤𝘢 𝘦 𝘥𝘦 𝘢𝘮𝘰𝘳 𝘴𝘪𝘯𝘤𝘦𝘳𝘰
…
C𝘢 𝘵𝘦𝘮 𝘰𝘳𝘰, 𝘮𝘢 𝘯𝘰 𝘵𝘦𝘮 𝘢𝘳𝘦𝘪𝘢
𝘊𝘢 𝘵𝘦𝘮 𝘥𝘪𝘢𝘮𝘢𝘯𝘵𝘦 𝘮𝘢 𝘯𝘰 𝘵𝘦𝘮 𝘣𝘦𝘭𝘦𝘻𝘢
𝘕𝘰𝘴 𝘳𝘪𝘬𝘦𝘻𝘢 𝘦 𝘴𝘰 𝘯𝘢𝘵𝘶𝘳𝘦𝘻𝘢
𝘌 𝘨𝘶𝘦𝘳𝘳𝘢 𝘱𝘢 𝘬𝘢 𝘦𝘹𝘪𝘴𝘵𝘪 𝘯𝘢 𝘯𝘰𝘴 𝘵𝘦𝘳𝘳𝘢
Marizia estava cheia de genica e com a “corda” toda. No entanto, o terceiro álbum só viria a aparecer em 2003, depois de uma pausa de 4 anos. A cantora tinha sido mãe, estava obrigada a se manter por algum tempo longe dos estúdios e dos palcos. A prioridade era cuidar do seu bebé, um rapaz de nome… Dailon Livramento!
Durante a Copa do Mundo 2002, o bebé Dailon estaria, certamente, a aprender a gatinhar. Tinha um aninho. A mãe, toda orgulhosa a ver crescer o seu menino, decide regressar aos estúdios no ano seguinte para dar à luz a mais um álbum: Daily!
O tema que dá nome a esse terceiro trabalho é uma dedicatória especial ao filhote:
𝘗𝘢𝘳𝘤𝘦𝘮𝘦 𝘶𝘮 𝘴𝘰𝘯𝘩𝘰 𝘵’𝘰𝘪ó𝘣 𝘵𝘢 𝘦𝘯𝘵𝘳á 𝘯𝘢 𝘯𝘩𝘢 𝘷𝘪𝘥𝘢
𝘜𝘮 𝘮𝘯𝘪𝘯𝘦 𝘱𝘪𝘬𝘯𝘪𝘯 𝘪 𝘵ã𝘰 𝘴𝘦𝘯𝘴í𝘷𝘦𝘭”
...
𝘉𝘰 𝘦 𝘯𝘩𝘢 𝘣𝘢𝘣𝘺 𝘯𝘢 𝘯𝘩𝘢 𝘷𝘪𝘥𝘢
𝘉𝘰 𝘦 𝘯𝘩𝘢 𝘵𝘶𝘥 𝘯𝘦𝘴 𝘔𝘶𝘯𝘥𝘰
O “bebenês” que se ouve no início, meio e fim da canção é a voz de Dailon.
Passaram duas décadas e meia! O "bebé-cantor" de 2003 é, agora, um homem feito! Tornou-se futebolista profissional. Um ponta de lança que rapidamente chegou à Série A italiana. Em março de 2024, ainda sem fazer 23 anos, estreou-se pela seleção de Cabo Verde. Em pouco mais de um ano caminha para as 15 internacionalizações.
Se Cabo Verde confirmar o apuramento – inédito - para a Copa do Mundo do próximo ano, Dailon Livramento estará entre os jogadores mais influentes na equipa dos Tubarões Azuis. É o melhor marcador da seleção nesta campanha de qualificação, com 3 golos.
Quando Marizia, toda babada, escrevia a canção “Daily” enquanto via aprender a gatinhar o seu pequeno rapaz, certamente não imaginava que, 20 e poucos anos depois, toda a nação cabo-verdiana estaria a orgulhar-se do seu rebento. Mas, mãe é mãe! E, normalmente, elas costumam ter umas certas premonições.
𝘛𝘶𝘥𝘶 𝘥𝘪𝘢 𝘣𝘰 𝘵𝘦𝘮 𝘶𝘮 𝘴𝘶𝘳𝘱𝘳𝘦𝘴𝘢
𝘪 𝘤𝘢𝘥𝘢 𝘥𝘪𝘢 𝘣𝘰 𝘦 𝘶𝘮 𝘣𝘦𝘭𝘦𝘻𝘢
𝘋𝘢𝘪𝘭𝘺, 𝘫𝘢 𝘣𝘰 𝘥𝘢𝘮𝘦 𝘤𝘦𝘳𝘵𝘦𝘻𝘢…
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Com Marizia e Dailon em dueto:
https://youtu.be/zKKsa-0wx2c?si=PHxwoCMCxqE_9n_1