Dezembro é um mês especial, todos dizem. É o último dos doze filhos de cada ano, o codé. E já sabemos qual a relação que, normalmente, se tem com o caçula lá de casa. É, regra geral, o mais paparicado e, por isso, tende a ser o “não-me-toque” da corte. Não raras vezes, o mais rebelde e cheio de manias. Mas, também, sabe ser doce, quando quer.
Em Cabo Verde, Dezembro é ainda mais especial. Ao entrar, traz logo consigo aquele fresquinho que destoa da calmaria diária de quase todos os outros irmãos que lhe antecedem. Concomitantemente, traz os cheiros de Natal e tudo o que rodeia a chamada quadra festiva. Traz as tais canções da época e que tocam de forma bem peculiar cada alma destas ilhas: as “Boas Festas” no clarinete de Luís Morais, o “Hoje é Natal” e “Novo Ano” de Manuel de Novas, os “São Silvestres” com Frank Cavaquim, Paulino Vieira… entre muitos outros.
Com efeito, Dezembro está ligado, de forma muito especial, à música cabo-verdiana. Ele e ela mantêm um relacionamento tão intenso, quanto estranho. Essa ligação íntima comporta muita alegria e muita tristeza. Entre ambos coabita um estado constante de euforia e saudades.
Dezembro assume-se como um “traz-e-leva”. E é este comportamento que torna turbulenta essa relação de amor e ódio.
Então, vejamos:
Dezembro trouxe à música cabo-verdiana dois dos seus mais conceituados compositores. Para muitos, aliás, os dois primeiros do pódio, numa prole onde sobressai um grupo bem generoso de gente talentosa. Sim, foi o último mês do ano que deu de presente a esta terra – e ao mundo – Francisco Xavier da Cruz “B.Leza” e Manuel Jesus Lopes “Manuel D’Novas”. A primeira dessas duas “prendas” foi “oferecida” em 1905. Escassos 33 anos depois, mandou vir a segunda, em 1938, exactamente na véspera de Natal. A música cabo-verdiana entusiasmou-se e curvou-se perante tão preciosas dádivas. E ficou eternamente grata a Dezembro. Os “presentes” ganharam um valor incomensurável, porque se tornaram imortais.
Mas, como que a fazer jus ao adágio popular “quem dá pão dá castigo”, o Senhor Dezembro, talvez deslumbrado com os efeitos colossais dessas duas “ofertas” feitas à música, resolveu passar a exigir dela algumas pagas. Um acto de remoque? Ou será que quis embarcar, também, na moda hoje em dia tão vulgar do “dá-me nha presente”? Epah, é em Dezembro, afinal, que mais se ouve o já estafado “dá-me nha presente” ou então “dá-me nha Boas Festas”. Até criancinhas de meio palmo já fazem isso, às portas dos supermercados, num descaramento tal que até chega a irritar as almas mais afáveis!
Dezembro resolveu, então, começar a agarrar e a levar. Birra de codé mimado? Talve! O mês número 12, o “último filho da mãe” (ups, Codé di Dona dixit), resolveu começar a actuar, sem dó nem piedade, sobre os fazedores da música cabo-verdiana. E arrebatou, pasme-se, figuras como Luís Rendall (1986), Norberto Tavares (2010) Cesária Évora (2011), Celina Pereira (2020), Teresa Lopes da Silva (2020). Não se contentando com compositores e intérpretes, ainda esticou a sua sanha, em 2020, ao estudioso da música cabo-verdiana, Moacyr Rodrigues. E muitos outros terá levado ao longo dos anos.
Até parece que anda a fazer escolhas a dedo. Basta pensar que Luís Rendall é referência obrigatória da música nacional, considerado por entendidos na matéria como “pai do solo do violão cabo-verdiano”; que Norberto Tavares, enquanto compositor, instrumentista e intérprete, tem uma obra impressionante; que Cesária é rainha; que Celina Pereira deixa um legado incomparável, no qual sobressai o resgate de tradições orais das ilhas, além de ter uma das vozes femininas mais belas de Cabo Verde; que Teresa Lopes da Silva gravou um disco de valor raro, tendo em conta as suas especificidades; que o nome de Moacyr Rodrigues figura entre os principais estudiosos da música cabo-verdiana, especialmente a morna.
Mais: note-se que, se retirarmos Luís Rendall, as outras figuras da música cabo-verdiana aqui referidas foram, todas, levadas pelo Sr. Dezembro nos últimos 10 anos. E, como que por capricho, resolveu que duas das senhoras desta lista – Cesária e Celina – teriam de partir no mesmo dia, num intervalo de 9 anos. Que mania! Mas esta ira dezembrina foi particularmente cruel em 2020, tendo feito três “rabata” num espaço de 10 dias. De 19 a 29 levou Celina Pereira, Moacyr Rodrigues e Teresa Lopes da Silva.
Entre a alegria da chegada e a tristeza da “hora di bai”, a relação entre Dezembro e a música de Cabo Verde reserva ainda outros episódios. Então, não foi em Dezembro que a Morna se tornou Património Imaterial da Humanidade, pela UNESCO? Não é Dezembro que guarda o Dia Nacional da Morna? Enfim, na alegria e na tristeza, na chegada e na partida… lá vão caminhando Dezembro e a música das ilhas, numa relação esquisita.
Senhor Dezembro, vê lá o que vai fazer neste 2021 e, já agora, nos anos seguintes... Olhe que nos últimos anos pegou pesado, hein! Será que podia dar uma trégua, bem prolongada, nesta birra?
Artigo de Benvindo Neves
Dezembro e música de Cabo Verde: uma relação estranha, cheia de alegrias e tristezas
6 de janeiro de 2021