De nome próprio Ângela Barros, conhecida por Neidy, nasceu e cresceu em Milho Branco, São Domingos, coração da ilha de Santiago. Mas, como tantos cabo-verdianos, só começou a ver verdadeiramente a sua ilha quando partiu. Foi em Coimbra, Portugal, que concluiu o curso superior em Gerontologia, uma palavra ainda estranha para muitos, mas que traduz uma ciência cada vez mais essencial: compreender o envelhecimento humano e encontrar formas de garantir dignidade, saúde e bem-estar aos idosos.
De férias em Cabo Verde, Neidy trazia outro olhar. O mesmo chão, mas novas lentes. E assim nasceu o pretexto para uma road trip [viagem pela estrada, tradução livre de inglês para português] pela ilha que a viu nascer - Santiago, demasiado vasta para se abraçar num só dia, mas perfeita para redescobrir em fragmentos.
A viagem começou em Milho Branco, diante de uma árvore icónica que muitos já passam sem reparar. Árvore símbolo de resistência, semelhante à que foi eternizada na capa do álbum Êxodo, em vinil, do histórico grupo musical Bulimundo, lançado em 1983. Neidi, que tantas vezes ali passara, parou pela primeira vez com verdadeira atenção. Talvez fosse isso que queria dizer a expressão: "sair da ilha para ver a ilha".
O próximo destino foi a Barragem de Poilão, a primeira construída à superfície em Cabo Verde. Ergue-se junto à fronteira dos concelhos de São Lourenço dos Órgãos e Santa Cruz, e ainda guardava a água generosa das chuvas do ano anterior. Quando lá chegámos, as primeiras gotas da nova estação já tinham caído, mas não o bastante para vestir de verde a paisagem seca em redor.
A barragem, outrora muito procurada, continua a ser um dos pontos turísticos marcantes da ilha. Para Neidy, aquele lugar não era totalmente estranho, já o tinha visitado em tempos de liceu, numa visita de estudo. Mas agora o olhar era outro. Do paredão, via-se ao longe o imponente Monte dos Órgãos a recortar o horizonte, como um guardião silencioso. Desta vez, em vez de passar apressada, Neidy deixou-se ficar. Pegou no telemóvel, fez fotos, registou ângulos, eternizou momentos. Porque há lugares que só revelam a sua beleza quando aprendemos a olhar devagar.
Era quarta-feira, dia de "Feira Somada", no concelho de Santa Catarina. A centenária feira que transforma Assomada em mosaico de cores, cheiros e gentes vindas de toda a ilha. Neidi, em clima de despedida de férias, abriu o telemóvel e, em chamada de vídeo, mostrou às amigas em Portugal o pulsar daquele espaço. Não resistiu às doçuras coloridas que, em Cabo Verde, se compram tanto para levar na bagagem com "encomenda de terra".
Conhecer toda a ilha de Santiago não é tarefa simples. Muitos dos seus encantos estão escondidos para além da malha de transportes públicos, exigindo tempo, paciência e gosto por longas caminhadas. As “hiace”, as famosas Toyota Hiace que cruzam a ilha de lés a lés, limitam-se às estradas principais que ligam a capital, Praia, a centros urbanos como Várzea de Igreja (São Domingos), Assomada (Santa Catarina), Cidade de Mangui (Tarrafal), Pedra Badejo (Santa Cruz) e Calheta (São Miguel). Para alcançar as localidades mais remotas, onde o alcatrão não chega, restam as carrinhas Hilux com bancos improvisados na carroçaria, que são parte do quotidiano das gentes da ilha.
Ainda na cidade da Assomada, no sentido Tarrafal, desviamos a direita e descemos para Boa Entrada, chegámos ao mítico "Pé di Polon", a maior árvore de Cabo Verde. Neidy nunca ali estivera. E como todos os que se deparam pela primeira vez com aquela imensidão verde, perdeu-se na grandeza do tronco, no frescor da ribeira que se mantém viva todo o ano. A maravilha misturou-se com o gesto já ritualizado da modernidade: sacar do telemóvel, enquadrar, registar. Mas, por detrás das fotografias, ficava sobretudo a sensação de ter finalmente diante de si uma árvore que, em Santiago, já é quase lenda.
Mais adiante, em Achada Falcão, ainda em Santa Catarina, o maior dos nove concelhos da ilha, visitamos a casa onde Amílcar Cabral, herói nacional e figura mundial, viveu parte da sua infância.
O mapa guiava-nos agora rumo ao extremo norte da ilha, à Cidade do Mangue, no município do Tarrafal. Mas escolhemos uma rota menos óbvia: a estrada que passa por Figueira das Naus. Para Neidy, era território inexplorado. Esta estrada raramente é percorrida pelos transportes públicos. O asfalto serpenteia montanha acima até Figueira das Naus e, depois, desce em curvas sucessivas até Ribeira da Prata.
Em Figueira das Naus, tínhamos um objetivo: visitar a Casa Museu e Fundação Cardeal Arlindo Furtado, inaugurada em 2024 no 75º aniversário de nascimento de Arlindo Furtado. Mas a porta estava fechada. Um morador explicou, com naturalidade, que quem detinha as chaves tinha ido à "monda", prática agrícola comum no interior por altura das primeiras chuvas. O contratempo, afinal, tinha uma boa razão. Ainda assim, para Neidy, educada em ambiente católico, queria muito entrar naquele espaço de memória e devoção, um museu dedicado ao primeiro Cardeal cabo-verdiano.
Do alto de Figueira das Naus, porém, a paisagem compensava qualquer desvio de planos: um miradouro aberto sobre Ribeira da Prata e lá ao fundo a Cidade de Mangue e o imponente Monte Graciosa, deitado como um enorme elefante a proteger a baía.
A descida confirmou-se como um espetáculo em movimento. Cada curva revelava um novo ângulo da Ribeira da Prata: o azul do mar, a praia de areia negra, os coqueiros alinhados ao longo do vale e o verde que, atrevido, parecia querer beijar a linha da costa. Diante de tanta beleza, Neidy não conteve o inevitável "uau!". Parámos, claro, para as fotografias da praxe. Afinal, se as redes sociais hoje têm um mérito, é este: dar a conhecer ao mundo as paisagens que sempre estiveram aqui, à espera de um olhar atento.
No fim da descida de Figueira das Naus, a estrada oferece escolhas: seguir em frente leva à praia de Ribeira da Prata; virar à esquerda conduz à zona de Cuba. Optámos pela segunda variante e fomos espreitar a Piscina Natural de Cuba, um recanto que se tornou popular durante a pandemia, quando o acesso às praias estava interdito. O lugar, outrora refúgio improvisado, ganhou fama e hoje é ponto obrigatório no roteiro turístico da ilha. Neidy adorou o cenário. Não se aventurou num mergulho, mas prometeu a si mesma regressar nas próximas férias.
De lá seguimos para a praia de Ribeira da Prata, famosa pela areia negra. O acesso faz-se por um curto caminho pedestre, entre coqueiros, que desemboca numa paisagem que mistura a areia negra cintilante, o verde da vegetação com o azul do mar. Neidy, com os seus vinte e poucos anos de idade, vivia ali uma experiência que parecia óbvia, mas era inédita: conhecer pela primeira vez cantos da sua própria ilha. As fotografias foram inevitáveis, mas o que ficou gravado foi sobretudo a sensação de tranquilidade libertadora. A praia pede silêncio, pede tempo e até convida ao acampamento. Fica a sugestão.
De Ribeira da Prata, seguimos até a Cidade de Mangue ou Tarrafal, como muitos a nomeiam. Mas antes, uma paragem de peso: o antigo Campo de Concentração, hoje Museu da Resistência. Ali, o ambiente impõe-se com a gravidade da história. É o museu estatal mais visitado do país e ponto obrigatório de passagem, não apenas para turistas, mas para qualquer cabo-verdiano que queira medir o preço da liberdade. Neidy já conhecia o espaço de visitas escolares, mas agora, com outra maturidade, sentiu a carga simbólica de forma diferente.
Quando, já perto das 16h00, chegámos à praia de Tarrafal, o calor apertava. Foi então que um chamado de uma vendedora de coco fresco captou a atenção de Neidy. A sorte sorriu-nos: os cocos eram enormes, cheios de água. Há dias em que tudo se alinha, até a água de coco vem em abundância.
A praia de Tarrafal ou Mar di Riba não precisa de apresentação. Neidy já a visitara várias vezes, mas este lugar é daquelas paisagens que, a cada regresso, parecem sempre a primeira vez. A baía protegida pelo Monte Graciosa, a areia dourada, a água límpida de azul turquesa, dezenas de botes de tons vermelhos numa parte da praia, os coqueiros ao meio da praia e a simpatia das gentes do Tarrafal compõem um postal vivo, difícil de esquecer.
E porque turismo também se faz da gastronomia, fechámos a tarde à mesa de um restaurante em Mar di Baxu, separado do Mar di Riba apenas pelo cais. O atum grelhado chegou fumegante, saboroso, com aquele gosto simples e fresco que só o mar sabe oferecer.
Com o sol a descer devagar no horizonte, partimos do Tarrafal em direção ao sul da ilha. Seguimos a estrada em direção a Serra da Malagueta, que se ergue majestosa a mais de mil metros de altitude. Fizemos uma breve pausa para espreitar a barragem de Principal, guardada entre montanhas, com água acumulada durante quase todo o ano.
A travessia da serra foi um regalo para os sentidos: o ar fresco, o nevoeiro suave que se desfazia no rosto e, sobretudo, o cheiro dos eucaliptos a espalhar-se pelo caminho, como se a natureza quisesse perfumar a despedida.
Já pensávamos em terminar o road trip com o tradicional pastel de milho de São Domingos. Mas, por esquecimento, não encomendámos com antecedência e, quando lá chegámos, a fila de clientes era demasiado longa. Ficou a vontade adiada, talvez para um próximo regresso.
E assim, o círculo fechou-se no mesmo ponto de partida: Milho Branco. O regresso teve sabor de descoberta. Neidy, tal como muitos cabo-verdianos, precisou partir para valorizar a sua terra. Viajar pelo estrangeiro, estudar fora, para depois voltar e olhar a ilha com olhos novos. Foi mais do que uma road trip; foi um reencontro.
Porque há viagens que não se medem em quilómetros, mas no modo como nos reconciliam com as nossas origens.
Localidade de Milho Branco
Barragem de Poilão (São Lourenço dos Órgãos)
Mercado de Assomada (Santa Catarina)
"Pé di Polon", a maior árvore de Cabo Verde, na Ribeira de Boa Entrada (Santa Catarina)
Figueira das Naus (Santa Catarina)
Piscina Natural de Cuba, Ribeira da Prata (Tarrafal)
Praia de Ribeira da Prata (Tarrafal)
Praia de Ribeira da Prata (Tarrafal)
Museu da Resistência, no Antigo Campo Concentração (Tarrafal)
Praia de Tarrafal
DB