Elida Almeida e Djodje durante a gravação do videoclip "É Zomban" [foto: reprodução Facebook Elida Almeida]
Crónica de Benvindo Neves
Elida Almeida está a comemorar os 10 anos de carreira. Com um percurso já consolidado, até se fica com a sensação de que a “menininha” de Kebrada está nisto há muito mais tempo. Um percurso feito de canções marcantes, de muito sucesso, mas que nalguns casos, também tem provocado alguns quiproquós.
Escutava a Elida Almeida no “Bom Dia Cabo Verde” desta quarta-feira, 16, na RCV a propósito dos seus 10 anos de carreira. À dada altura a artista recordou a polémica que a canção “É Zonban” causara aquando do seu lançamento, há oito aos. E disse: “Foi pesado. Houve momentos em que as críticas me deixaram mesmo triste e em baixo. Cheguei à conclusão que há pessoas que não entendem o que é música, o que é arte e o que é liberdade de criação”. E acrescentou que “nem tudo o que cantamos tem a ver conosco ou tem a ver com o nosso pensamento.”
Esta parte da entrevista fez-me revirar as envelhecidas gavetas da cachola onde mofam ideias de escritos que depois, com o impiedoso correr dos dias, acabam por não saírem de lá. Fui ter com umas breves reflexões que na altura até tencionei publicar para tentar apaziguar os ânimos dos ofendidos com a “malandragem” dos rapazes da Praia. A ideia do texto morreu antes de nascer. Mas agora, com a entrevista da Elida, eis-me aqui a ressuscitar fragmentos dessa reflexão.
Estava-se em 2017. Elida preparava o seu segundo álbum, depois de quase três anos a digerir a sua triunfante estreia na discografia com “Ora Doci Ora Margos”.
O segundo “filho” já se lhe sabia o nome antes mesmo de vir ao mundo: Kebrada. Era o tributo que se impunha ao pacato lugarejo, no miolo da impressionante Ribeira dos Picos, que soube ninar e preparar a menina-moça para os holofotes do show biz.
Em jeito de adiantamento à Kebrada, Elida lança, com antecedência de quase seis meses, o single “É Zomban” numa parceria com Djodje. O tema, escrito por Manu Reis, tinha sido gravado três anos antes pelo seu autor, mas havia permanecido um tanto quanto despercebido. Com Elida e Djodje a canção agitou a malta. E provocou a ira da rapaziada da Praia. Afinal, como diz o ditado, “quem não sente não é filho de boa gente”, mesmo que seja um… malandro.
Rapaz di Praia e so malandru
Rapaz de Praia ten mau manera na mundu
Es tufudja-m na nha lugar
Pe-s panha-m bongolon
Sapatinha ku fixon, da subi es latxi
Carrego comigo uma mania incorrigível. É-me impossível ouvir uma música e não começar a analisar/desconstruir a letra. Logo quando escutei “É Zonban” comecei a analisar o conteúdo e depressa identifiquei-me com a composição. Não que concorde que Rapaz di Praia sejam todos uns malandros.
Tendo nascido e crescido no meio rural, e conhecendo bem as lides do campo por ser filho de agricultor, depressa comecei a pôr-me na pele do sujeito poético desta canção. E tive pena dele, porque aquilo que lhe fizeram os rapazes da Praia é, para um lavrador, um drama.
Em Cabo Verde, regra geral, um agricultor passa o tempo gastando toda a sua energia a ninar suas culturas, tantas vezes sem água, ou a pagar caro por ela. Como se não bastasse a escassez de água, ele tem de lidar quase sempre com pragas. Paga, e caro, para lhes dar combate. Paga, e caro, para ter quem lhe possa servir de força de trabalho, quando os encontra. Ou seja, nunca tem descanso. E no fim, mesmo que o preço do sacrifício seja superior ao do benefício, ele não importa. As culturas, as tantas, são como os filhos. Garantir o seu sustento/crescimento é um fim em si mesmo, sem olhar a custos ou benefícios.
Mas o citadino (o rapaz di Praia) normalmente não tem esta consciência. A sua realidade é outra. Não conhece as lides, labutas e mundividências inerentes ao quotidiano do camponês. É normal! Nascer e viver nas cidades acarreta outras (pre)ocupações.
Na Praia vivem muitas pessoas que vieram do campo, sobretudo do interior de Santiago. Deixaram sua ribeira ou seu cutelo mas mantêm forte ligação com sua "fora". No tempo das Azaguas [época das chuvas] é vê-los a precipitar-se para os seus lugares, para a sementeira, monda e codjeta.
Por conseguinte, o "Rapaz di Praia" da canção em análise é "kês k sons". Na composição, o autor faz uma generalização consciente quando leva o sujeito poético a dizer que "rapaz di Praia é só malandro". Estilisticamente, é aquilo que se chama sinédoque, uma figura de estilo que tanto pode ser o recurso ao todo para representar uma parte, ou a tomada de uma parte pelo todo.
Na verdade, o sujeito poético da canção "É Zonban" está a deplorar o comportamento daquele tipo de moço da cidade que não tem escrúpulos, invade a propriedade alheia e, como se não bastasse a gravidade desse ato, ainda atua como um verdadeiro daninho.
Es tufudja-m na nha lugar
Pe-s panha-m bongolon
Sapatinha ku fixon, da subi es latxi
Quando o desgraçado “tufudja” no lugar alheio (horta, merada, padjigal), vai sem piedade. Além de surrupiar produtos, é capaz de ir estragando tudo que lhe aparece pela frente, por insensibilidade, desconhecimento, ou até por pura maldade. No fundo, acaba por atuar como aquele gato manhento que conseguiu entrar na capoeira do vizinho, comeu apenas metade de um borracho mas, antes de sair, fez questão de matar todos os outros pombos e deixá-los esfrangalhados pelo chão da capoeira.
É precisamente essa invasão, em modo vendaval, que representa uma grande afronta ao dono da propriedade. O homem rural cabo-verdiano, o santiaguense neste caso, é caracterizado pelo seu "corason largu e mon fadjadu", como diria Norberto Tavares. Por isso, não se importa de oferecer muito daquilo que retira da terra ao visitante que chega com bons modos. Fá-lo sempre com amizade e generosidade. E nem espera que se lhe peça algo, ele simplesmente apressa-se a oferecer, com abnegação.
Ora, se o humilde homem da terra fica orgulhoso em doar a quem chega, já para quem resolve faltar-lhe o respeito ele vira fera. Não suporta ser afrontado, zombado. Eu diria que prefere oferecer um saco de mangas a um desconhecido a ver um larápio a retirar-lhe uma da mãe. E isso fica evidente quando o autor, Manu Reis, põe o sujeito poético a dizer:
Se bo pidin n ta dau
Des manera bo a ta faze n ca ta seta disaforo
Disgrasadu fidju naxa ki kre mufina-m
Disgrasadu sem burgonha Ki kre disgrasa-m
O dono do lugar não suporta a malandragem, de tal forma que até está decidido em levar o caso à justiça:
N' ata ba ti São Domingo
N' ata ba na Delegado, oh
N' ata ba pa-m bai po kexa go, ayan ayan
Lá atrás, quando escutei a música pela primeira vez, o conteúdo remeteu-me logo para a minha infância, em Santo Antão, e da raiva que nos invadia quando víamos a entranhar pelo leito da Ribeira da Torre os rapazes “so malandro” da Povoação (hoje dizem Puva).
Sempre que, ao atravessarem os caminhos, vissem uma papaia madura, uma manga ou uma banana a querer amadurecer entre dezenas de outras ainda verdes, lá estavam eles a “tufudjar” na horta alheia, correndo em cima de canteiros, de regos, amassando batatais e mandioqueiras, danificando tudo por conta de uma bananinha ou de uma manga. Se bo tivesse pdid n tava dób. Desgosód, fi de nasa! Diria, certamente, o agricultor santantonense.
Há oito anos, altura em que saiu “É Zonban” servindo de promoção ao álbum Kebrada, formou-se uma onda de indignação junto de certos rapazes da Cidade da Praia, que se terão sentido ofendidos na sua honra.
O problema não está no conteúdo da composição. O problema, penso, reside, aí sim, na interpretação. Muita gente tende a tomar as canções ao pé da letra, sem se dar ao trabalho de fazer um exercício, ainda que básico, de hermenêutica. E pior que não saber interpretar é pensar que cada criação é exatamente o reflexo do pensamento ou da vida do seu criador. Ainda pior é quando se toma por criador quem simplesmente interpretou. Nestes casos, ou ele colhe todos os louros ou então paga o pato inteiro. Na tal entrevista à RCV, Elida Almeida lamentava isso mesmo.
Curiosamente, a mesma ira dos indignados com “rapaz di Praia e so malandro” voltou a aparecer ainda em 2017 quando, em finais desse ano, foi lançado o álbum Kebrada. Um dos temas do reportório desse CD traz o “desconfortável” título “Grogu Kaba”.
Pamo ki grogu ki ka ta kaba
Pamo taberna keta ka ta fitxa
Pamo ki txuba ka ta kai na txom kram
Homis ta mondu bua ta kai la lugar
Ah, antes de N latxi, deixo este lembrete.
No cancioneiro cabo-verdiano Rapaz di Praia dja dura malandro. Há mais de 40 anos, em 1983, António Sanches, homi lá di fora, gravou um LP intitulado “Buli Povu”. Num dos temas do disco - “Bem De Fora” – pode ouvir-se:
N bem la di fora N bem pa Praia
Trata documentu pa-n ba pa Lisboa
Camarada, rapaz di Praia é malandro
Roba-n nha cartera, es po-n na miséria
Ah Elida, bo tem culpa rixu!