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    Viagens Pela Minha Terra: Uma escalada ao teto do Maio

    27 de maio de 2025

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    Crónica de Benvindo Neves

     

    Hoje estamos no Maio, desta vez para uma etapa de Montanha. Sim, na plana ilha do Porto Inglês também há rochas e não pense que esteja a falar de montes de areia.

     

    Numa manhã de domingo, decidi escalar o Monte Penoso, a elevação mais alta da ilha do Maio, tem 437 metros.

     

    Fui sozinho. Saí do Porto Inglês de manhãzinha. Pela estrada, solitário,  fui desfrutando do silencio da planície por onde vai passando a estrada, ora calcetada ora asfaltada, até parar na comunidade de Alcatraz, praticamente no sopé do Monte Penoso. "Alcatraz, Raiz di Monte Penoso", leio algures.

     

    Quando cheguei a Alcatraz dei conta de que não tinha levado água comigo. Entrei na comunidade, estava tudo ainda a dormir. Afinal é domingo! Parei junto à praceta da zona onde encontrei três rapazes. Perguntei se haveria uma mercearia por aquelas bandas onde pudesse comprar uma garrafa de água. Solícito, um deles se oferece a vir comigo. A tal mercearia que me fora indicar está fechada. “Não se preocupe”, disse-me. Foi até uma casa, bateu à porta e instantes depois apareceu um jovem. Ainda a esfregar os olhos para afastar o sono veio abrir-me a porta do botequim. Quanta boa vontade!, pensei.

     

    Agora sim, bem providenciado, já posso galgar o Penoso.

     

    Avanço na estrada que atravessa toda a ilha. Uns dois quilómetros após deixar Alcatraz, paro o carro na berma da estrada que dá para Pedro Vaz e Cascabulho e desço. Vou começar a subir o Monte Penoso.

     

    Momentos depois de ter iniciado a escalada, vejo do meu lado esquerdo uma senhora curvada sobre umas leiras de terra, compenetrada a fazer sementeira. Na verdade estava a ressemear, a preencher as covas cujos grãos não germinaram e/ou perderam a batalha da sobrevivência logo após às primeiras chuvas.

     

    Passei de fininho, não quis incomodá-la na sua sagrada tarefa. Aliás, nem sei se deu conta de mim a passar pelas redondezas.

     

    Solitário, estou a subir. Desde o sopé que se tem o cume à vista, bem visível pelas antenas que se erguem lá cima, junto a uma pequenina casa. Enquanto vou fazendo o trilho em ziguezague encontro várias surpresas. Entre elas, algumas pequenas fontes de água cristalina que, com uma boa chuvada que tinha bafejada a ilha uns dias antes, ficaram bem nutridas.

     

    Durante a escalada não encontrei nem vi qualquer indivíduo. Mas tive sempre a companhia de diversas criaturas: vacas, cabras, galinhas-do-mato, pardais, francelhas. Não tinha pressas. Levei hora e meia a chegar ao topo.

     

    Do cume a vista é fenomenal. Vê-se o Maio de ponta a ponta, pode-se vislumbrar praticamente  todos os seus 13 povoados. Pilão Cão e Alcatraz, muito mais perto, parecem duas localidades gémeas. Mais além no horizonte emerge grande grande parte da ilha de Santiago, mais o vulcão do Fogo em dias de boa visibilidade, como era o caso.

     

    Trago de novo o olhar para o Maio, para muito mais perto de mim. Ali em baixo, estica-se o grande perímetro florestal que se estende desde a Calheta até Cascabulho. São cerca de 3.500 hectares de mata, composta sobretudo pela acácia americana. A linearidade do vasto matagal provoca um efeito visual lindo.

     

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    Estive, sozinho, cerca de duas horas lá em cima. Iniciei  a descida em passos brandos, queria descobrir outros pontos de vista que eventualmente me tivessem escapado quando subia.  A dada altura, chama-me atenção no fundo de uma ravina um enorme esqueleto de uma alimária. Parece ser de gado bovino. Deve ter sido uma vaca que ao pastar por aquela encosta terá caído de enorme precipícios, pensei comigo. Já só resta um conjunto de ossos, limpos e brancos.

     

    Acabo de concluir a descida! Já estou a atravessar o trilho onde tinha deixado a mulher na sua lavoura quando eu ia a subir.  Regressando do alto do Penoso, passadas quase 3 horas, a mulher continuava ali, muito concentrada no seu ato sagrado de mandar à terra sementes de milho e feijão.

     

    Dessa vez decidi meter conversa. Disse-me o nome: Laura. É da localidade de Alcatraz. "Meu marido faleceu recentemente, os filhos estão fora. Não podia deixar as terras de Saquinho Grande ao deus-dará, tenho de cuidar delas", diz, mesmo sabendo de antemão que está a apostar numa espécie de jogo de sorte e azar. No ano passado não colheu nada, mas a esperança sempre há de se manter bem viva. Enquanto se expressa, olho atentamente para a mulher e vejo no seu olhar a expressão de uma fé inabalável. Ela tem toda a certeza do mundo de que se vai concretizar aquilo que me diz.

     

    A conversa já ia durando uns minutos. Avisei que tinha de ir-me embora. Desejou-me boa jornada e explicou que ela ia ficando mais um pouquinho, "Agosto deixou a ilha bem regada, espero que setembro traga mais chuva e que o ano seja de boa colheita", disse-lhe enquanto partia. E ela: "vai ser, com certeza! Tenho fé! Vá com Deus, meu rapaz!"


    Nesse instante invade a minha mente uma canção do maiense Tibau Tavares, cantada pela Lura, e que se refere à desgraça de umas as-águas goradas.


    Txiga mes di agost Txuba bem txobé 
    Djents torna volta horta Pa faze simentera 
    Dipos di simentera Midjo bem nasce 
    Minins dent d horta Ta tadja pardal

    Cumeçade monda Djents tud animad 
    Ta spera um coba d ague Pa as agua da

    Sol kent sta txeu 
    Sol sta raganhad 
    Planta ta seca 
    Txuba fica ca bem

     

    Faço “pause” na letra e nos acordes desta canção que me ecoam insistentemente nos ouvidos. Esconjuro e vou á minha vida. Mas, a música volta e começa a fazer “loop” na minha cabeça.