Hellen voltou a escolher Cabo Verde como destino de férias. E regressou pelo mesmo motivo que a trouxe pela primeira vez: mergulhar, com respeito e curiosidade, na cultura cabo-verdiana. Espanhola de Madrid, começou esta nova viagem na ilha de São Nicolau, onde dedicou alguns dias a ajudar uma amiga num projeto social que usa a dança como ferramenta de desenvolvimento pessoal para crianças.
Depois, seguiu para a ilha de Santiago, a ilha maior, com um objetivo muito claro: aprender mais sobre o batuku. Queria sentir os ritmos, compreender a cadência das letras, conhecer a história e deixar o corpo falar através da dança. Desta vez, convidou a amiga Bonai, natural da Guiné Equatorial e residente no Reino Unido, para partilhar o roteiro que vivera um ano antes: conhecer os Rabelados em Espinho Branco, reencontrar a majestosa árvore Polon, as gentes, revisitar caminhos e afetos.
A ligação de Hellen com a cultura cabo-verdiana cresceu também através da amizade com Rosy Timas, dançarina da conceituada Companhia de Dança Raiz di Polon. Foi com Rosy que participou em workshops e intensivos de dança. E foi num passeio pelo Mercado de Sucupira, o pulmão informal da cidade da Praia, que o destino lhe apresentou outra protagonista desta história: uma vendedeira ambulante que também é batucadeira. Uma troca de palavras bastou para nascer um convite inesperado: Hellen poderia participar no ensaio do grupo de batuku da vendedeira.
O ensaio estava marcado para as 17h30. Para aproveitar o dia, saímos cedo rumo ao interior da ilha. Era domingo. O itinerário era ambicioso: Longueira (São Lourenço dos Órgãos), cidade de Assomada, Boa Entrada, Piscina Natural de Cuba, praia de Tarrafal e, por fim, o regresso à cidade da Praia para o ensaio do grupo de batucadeiras "Fidjus di Rabenta", no bairro de São Pedro/Latada.
Éramos seis na pequena "caravana": eu, Hellen, Bonai, Rosy Timas, Rony (ambos bailarinos da Raiz di Polon) e o filho de Rosy. A primeira paragem foi Longueira, na zona alta dos Órgãos, no terço central da ilha, onde, no meio de um manto verde que parecia respirar, observámos a imponente árvore "Lemba Lemba", uma das mais antigas e maiores da espécie em Cabo Verde.
A poucos minutos dali, junto ao Mercado de Órgãos, fizemos outra pausa. A mãe do Rony vende carne de porco assada naquele espaço gastronómico que reúne comunidade e visitantes. Era impossível recusar o tradicional pão com carne assada, e fruta da época, a manga, um pequeno luxo da terra.
Seguimos para Assomada, onde visitámos a recém-inaugurada "Rua d´Arte", na zona pedonal. Tivemos a sorte de encontrar a batucadeira Eneida Sena, do grupo Herança di Nós Terra, que estava a gravar um videoclipe. Hellen e Bonai aproveitaram a pausa entre gravações para conversar e guardar o momento em fotografia.

Hellen e batucadeira Eneida Sena
A etapa seguinte levou-nos novamente à ribeira de Boa Entrada, para revisitar o grandioso Polon, árvore que Hellen já carregava no coração desde a primeira viagem. Como se abraçasse uma velha amiga, aproximou-se do tronco com reverência, fechando os olhos por alguns instantes.

"Pé di Polon" na ribeira de Boa Entrada
Do centro da ilha seguimos para o norte, em direção a praia do Tarrafal. Mas antes, desviámos para a Piscina Natural de Cuba, na Ribeira da Prata. Era domingo, o local estava cheio, mas o mergulho fresco compensou a multidão. Aconselho sempre a visita em dias de semana, entre às 10h00 e às 15h30, quando o sol ilumina a piscina de tal forma que se vê o fundo cristalino e o azul parece cintilante. [ver vídeo promocional da Piscina Natural de Cuba]
A caminho do Tarrafal, a estrada atravessa duas maravilhas aturais do município: a praia de Ribeira da Prata e a caldeira vulcânica Maria Sevilha, onde a estrada entra mesmo de da caldeira. A paisagem é sublime: o verde intenso das encostas, o negro da areia, o brilho do mar e, ao longe, o vulcão da ilha do Fogo desenhando o horizonte.
Já perto da praia do Tarrafal, a luz começava a cair. Não houve tempo para mostrar a Bonai aquele cartão-postal de areia dourada e águas calmas. O relógio impunha urgência: era preciso regressar à Praia para o ensaio com o grupo de batuku.

Ensaio de batuku, em São Pedro / Latada
Em São Pedro/Latada, paramos a rua principal do bairro, atravessámos becos até chegar ao terraço de uma habitação simples, onde cerca de oito batucadeiras, três delas adolescentes, formavam a roda. Hellen subiu as escadas com um sorriso largo, como quem reencontra um lugar que já sonhava.
Hellen observava com um olhar investigativo todos os detalhes: os gestos, o balanço dos corpos, o compasso, os panos, os ritmos "pam pam", "tchabeta", "rabicada". Não fala crioulo, mas construía uma língua própria, feita de espanhol, português e palavras soltas de crioulo que a ajudavam a mergulhar no momento. Havia uma alegria contagiante no ar: de um lado, as visitantes que buscavam autenticidade; do outro, mulheres que se emocionavam ao ver duas turistas abraçarem uma tradição secular, lá no fundo do subúrbio da Praia, que raríssimas vezes entra na mapa dos roteiros turísticos do país.
Durante uma hora e meia, viveram ali uma entrega total. Hellen e Bonai entraram no terreiro do batuku e dançaram, incentivadas, só o olhar e a áurea, pela experiente Rosy Timas. Quando o sol finalmente se escondeu atrás dos montes que cercam o bairro, o ensaio terminou, e seguimos para o centro da cidade, com o coração cheio.
No dia seguinte, uma segunda-feira, Rosy não pôde acompanhar. O plano era visitar a Comunidade de Rabelados, em Espinho Branco; seguir para a Cidade Velha; passar pelo Mercado de Sucupira e terminar no Plateau.
A viagem começou cedo, rumo ao nordeste da ilha. Hellen já conhecia os Rabelados, mas queria aprofundar a experiência e proporcionar à Bonai esse banho etnográfico. Fomos recebidos por Greicy, jovem artesã com uma história de vida inspiradora: alfabetizada apenas aos 12 anos, entrou no ensino regular aos 14 e, hoje, está no último ano de licenciatura em Matemática.
A pedido de Hellen e Bonai, Greicy contou a trajetória dos Rabelados, o rompimento com as reformas litúrgicas dos anos 40, o isolamento nas montanhas e a arte como ferramenta de sobrevivência e inclusão social. A dupla encantou-se com as pinturas que alimentam o projeto "RabelArte", idealizado pela ativista cultural Misá, que dedicou anos ao trabalho com a comunidade.

Hellen e Greicy, na comunidade de Rabelados
De Espinho Branco seguimos para o extremo sul, a mais de 50 Km, rumo à Cidade Velha, Património Mundial da Humanidade. Do alto Forte Real de São Filipe avistámos a malha urbana do sitio histórico. Descemos ao centro da cidade, passamos à Rua Banana, ao Pelourinho e à orla marítima, lugares que marcam as raízes mais profundas da história cabo-verdiana.
De Espinho Branco seguimos numa "viagenzinha" até ao extremo sul da ilha, cerca de 50 Km, rumo à Cidade Velha, o único sítio histórico classificado como Património da Humanidade em Cabo Verde. Foi ali que nasceu o primeiro centro habitacional do país, erguido para e pelo tráfico de escravos.
Próxima paragem: o Mercado de Sucupira. Ali, entre cores vivas e aromas que se cruzam nos corredores apertados, respira-se o pulsar do maior mercado informal de Cabo Verde, onde se vende de tudo um pouco. Hellen e Bonai procuravam vestuário feito com tecidos típicos dos países da costa ocidental africana. Hellen, que conhece bem o Senegal, deixou-se logo encantar pelas estampas.
O vendedor, natural da Guiné-Conacri e também costureiro, em poucos minutos transformou o tecido em peças feitas à medida. Era tempo de mangas, e Hellen aproveitou para comprar "manginho", o fruto doce e apetitoso que dá ainda mais sabor ao mercado de Sucupira.

Bonai
Do Sucupira seguimos até ao Plateau, centro histórico da capital. Caminhámos pela Rua Pedonal, onde Hellen e Bonai tinham agendado uma aula de dança tradicional na sede da Companhia Raiz di Polon.
Elas queriam assistir a atuações de grupos de batuku em palco. Na agenda cultural da capital, o espaço 5al da Música dedica as noites de terça-feira exclusivamente ao batuku. Mas, para desgosto de Hellen e Bonai, a viagem de regresso estava marcada para a manhã de terça-feira. Fica para a próxima.
Antes de partir, Hellen confessou um novo sonho: criar em Madrid um grupo de batuku, promover intercâmbios com Cabo Verde e manter viva essa ponte cultural que, para ela, já deixou de ser viagem. É pertença.
Hellen volta sempre. E Cabo Verde volta sempre a ela.
Crônica: Décio Barros

